AS DATAS CÍVICAS DO MÊS DE ABRIL E UMA REFLEXÃO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA COLETIVA


Durante o mês de abril, temos quatro datas cívicas em nosso calendário: o Dia do Hino (13/04), o Dia dos Povos Indígenas (19/04), Tiradentes (21/04) e a Chegada dos Portugueses ao Brasil (22/04). Essas datas representam elementos fundamentais para a formação e a preservação da nossa memória coletiva, e nos fazem refletir sobre a construção de nossa identidade nacional, seus limites e contradições, em uma história em permanente construção.

O Brasil é resultado de um longo processo colonial. O desafio de construir uma identidade nacional coube aos diferentes grupos que exerceram o poder político no país.

A visão eurocêntrica provocou um apagamento do rico patrimônio cultural dos diferentes povos originários que aqui viveram, antes da criação do Brasil. Por outro lado, construiu uma imagem do ”índio”, exótica e distante do seu modelo civilizacional, iniciada na Carta de Pero Vaz de Caminha (1500). Graças aos últimos estudos arqueológicos, podemos compreender a complexidade das sociedades sedentárias que se desenvolveram no território, como as cidades jardins da Amazônia e as sociedades dos sambaquis. Somado a esses estudos, temos a importância das obras de intelectuais indígenas, como Ailton Krenak e Daniel Munduruku. 

Para entendermos esse processo, é necessário retornar ao período entre os anos de 1808 e 1820. O território havia deixado gradualmente de ser colônia e se tornado sede do Império Ultramarino Português. Com a cisão entre os reinos do Brasil e de Portugal, em 1822, a construção de uma identidade nacional passou a enfrentar três obstáculos: ter uma história independente ou vinculada a Portugal, como o projeto nacional poderia superar os regionalismos e quem seria o povo brasileiro.

O fato de o processo de independência ter sido liderado pelo príncipe regente D. Pedro fez com que a história oficial do país estivesse diretamente vinculada à história portuguesa. Isso se intensificou com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), durante a regência de Araújo Lima. Nesse período, o país foi marcado por uma série de revoltas que ameaçavam a unidade do território (como a Sabinada e a Farroupilha) e intensificavam o sentimento antilusitano (como na Cabanagem). O IHGB encomendou uma série de produções históricas que destacavam o protagonismo da cultura portuguesa.

 

Em 1854, a pedido do imperador D. Pedro II, foi publicado o livro História Geral do Brasil, produzido pelo historiador francês Francisco Adolfo de Varnhagen. A obra é marcada por uma narrativa centrada nos grandes acontecimentos e heróis nacionais.

O culto aos heróis foi intensificado no início do período republicano, influenciado pelo pensamento positivista. No Decreto nº 155-B, de 14 de janeiro de 1890, o governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca determinou as datas cívicas do país. O dia 21 de abril foi escolhido como celebração dos Precursores da Independência, mais conhecido como o Dia de Tiradentes. O novo governo buscava construir uma imagem que se desvinculasse da monarquia dinástica, respaldando a República dos Militares. Para isso, nomeou um novo patrono da pátria: Tiradentes.

A ausência de registros iconográficos do inconfidente Joaquim José da Silva Xavier, sua participação entusiástica no movimento republicano e sua passagem pela carreira militar permitiram a construção de um novo herói, o “Jesus Cívico”. A Inconfidência Mineira ficou marcada no imaginário popular da província das Minas Gerais, mas não tinha o destaque oficial do Império, pois foi um levante contra a autoridade da dinastia Bragança, governante do país. Entretanto, em 1870, com a fundação dos partidos Republicanos, a imagem de Tiradentes ganhou força como predecessor da independência. 

Esse mesmo decreto escolheu o dia 3 de maio como data de comemoração do Descobrimento do Brasil, mesmo após o consenso de que a chegada da expedição de Pedro Álvares Cabral ocorreu em 22 de abril de 1500 (comprovado pela carta de Pero Vaz de Caminha, encontrada em 1817). Essa decisão foi tomada para separar as duas comemorações. O descobrimento foi considerado feriado até 1930, quando o governo provisório de Vargas revogou diversas datas comemorativas. Isso fez com que o dia 22 de abril se consolidasse na memória coletiva como referência da Chegada dos Portugueses. A construção do 22 de abril está vinculada à corrida mercantilista entre as Coroas Ibéricas, para celebrar uma vitória portuguesa. 

Em 1494, foi assinado, na cidade de Tordesilhas, um tratado que definiu a divisão do mundo entre Portugal e Espanha. A coroa portuguesa estava construindo uma rota de comércio para o extremo Oriente, via o Oceano Atlântico, circunavegando a África e tendo acesso ao Oceano Índico. A chegada da expedição de Cristóvão Colombo à América, em 1492, fez com que os portugueses alterassem suas navegações em sentido ao Oeste da Ilha de Cabo Verde. Para validar o Tratado de Tordesilhas, o rei português D. Manuel I enviou Duarte Pacheco Pereira (1498), que antes de seguir ao sul da África, parou no litoral, em algum ponto entre os atuais Maranhão e Pará. A viagem de Cabral ocorreu posteriormente, iniciada em 9 de março de 1500. Já havia acontecido três expedições espanholas para o litoral brasileiro: as de Alonso de Hojeda (junho de 1499), Diogo de Lepe (entre fevereiro e março de 1500) e Vicente Pinzón (janeiro de 1500).

A segunda data de destaque neste texto é o 19 de abril, dia dos Povos Indígenas. A construção desta celebração está ligada à Era Vargas (1930 a 1945). O governo Vargas marcou o ápice do nacionalismo, desenvolvido no decorrer da crise do regime oligárquico. Diferentes vertentes políticas se debruçaram sobre a construção de propostas nacionalistas nos campos político, econômico, cultural e artístico. Um grande exemplo foi a Semana de Arte Moderna de 1922, semente do Movimento Antropofágico e do Movimento Verde-Amarelo. Vargas colocou a identidade nacional como uma política de Estado. A base ideológica era a Democracia Racial, que compreendia a identidade nacional a partir das culturas portuguesa, indígena e africana. Elementos populares foram incorporados ao projeto nacional varguista. No dia 2 de junho de 1943, por meio do Decreto nº 5.540, Vargas instituiu o Dia do Índio, seguindo a determinação do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México em 1940. 

Desde o final da década de 1910, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (alterado em 1918 para o Serviço de Proteção aos Índios), buscava uma mudança na política indigenista. O indígena deixaria de ser um obstáculo para a “expansão do progresso” e seria integrado no projeto nacional, porém, ele incorporaria uma cultura distinta da sua, abandonando suas tradições e relação com a terra. Essa política foi introduzida pelo Marechal Rondon, na política de integração do território (litoral – sertão). Entre as décadas de 1940 e 1950, a política indigenista passa por uma transformação, destacando-se o trabalho do antropólogo Darcy Ribeiro. A ideia de integração passava a levar em consideração a demarcação de terras indígenas junto com a preservação de suas tradições e costumes. Esse processo esteve vinculado com o projeto de desconstruir a imagem estereotipada do indígena. Darcy foi fundamental na construção do Museu Nacional dos Povos Indígenas (inaugurado oficialmente no dia 19 de abril de 1953) e na criação do Parque Nacional do Xingu (fundado em  31 de julho de 1961).

Com o processo de redemocratização, a Constituinte de 1988 abriu espaço para a discussão sobre a ampliação da cidadania, incorporando temas como a criminalização do racismo e a proteção das culturas afro-brasileiras e indígenas. Em busca de protagonismo, o movimento indígena trouxe à tona uma luta por reflexão sobre a formação da nossa identidade e a generalização de grupos fundamentais na nossa história. Em 2008, por meio da Lei 11.645/2008, passou a ser obrigatório o ensino da História e Cultura Indígena, Afrobrasileira e Africana no currículo das  escolas.

O termo “indígena” substituiu o nome genérico “índio”, valorizando a cultura e o processo histórico dos povos originários. No dia 8 de julho de 2022, a presidência sancionou a Lei nº 14.402, que alterou o decreto de Vargas, passando de “Dia do Índio” para “Dia dos Povos Indígenas”.

A busca pela formação do povo brasileiro continua. Preservar a memória coletiva é extremamente importante para entender a nossa história e desenvolver um sentimento de pertencimento que inclua a pluralidade de um país continental, formado pela integração de diferentes povos.

Isso nos faz únicos. Isso nos faz brasileiros.

Quer continuar refletindo sobre a construção da nossa memória coletiva? 

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Por Willlian Sandes Professor de História do Ensino Fundamental – Anos Finais

BARRETO, C. A construção de um passado pré-colonial: Uma breve História da Arqueologia no Brasil. Revista USP, v. 0, n. 44, p. 32–51, 28 fev. 1999.

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BRASIL. Decreto-Lei Nº 5.540, de 2 de junho de 1943. Considera “Dia do Índio” a data de 19 de abril. Rio de Janeiro, DF: Diário Oficial da União, 1943.

BRASIL. Decreto nº 155-B, de 14 de Janeiro de 1890. Declara os dias de festa nacional. Rio de Janeiro, DF: Diário Oficial da União, 1890.

BRASIL. Lei Nº 14.402, de 8 de julho de 2022. Institui o Dia dos Povos Indígenas e revoga o Decreto-Lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2022.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 174 p.

CLEMENT, C. R. et al. Domesticação das paisagens amazônicas. Estudos Avançados, v. 38, n. 112, p. 55–72, 29 nov. 2024.

REIS J.C. As identidades do Brasil: De Varnhagen a FHC. V. 1. Editora FGV, 2007.

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